terça-feira, 6 de março de 2012

Obediência e liberdade


Os dois caminhos 

Um escrito cristão do século I, chamado "A Didaqué ou Doutrina dos doze Apóstolos", começa assim: «Há dois caminhos: um da vida e outro da morte. A diferença entre ambos é grande». O caminho da vida - explica - consiste em amar a Deus e ao próximo e observar todos os outros Mandamentos d'Ele. Pelo contrário, quem despreza os Mandamentos da Lei de Deus e se entrega às paixões, hipocrisias, orgulho, adultério, rapinagens, etc., esse envereda pelo caminho da morte. «Filho, fica longe de tudo isso», exorta o autor anônimo desse antiquíssimo texto catequético (I e II).
Como os primeiros cristãos, procuremos compreender os roteiros que os mandamentos da Lei de Deus nos indicam como «caminho da vida». Servindo-nos de uma comparação, vamos imaginar esse «caminho da vida» como uma moderníssima estrada. Podemos pensar numa das grandes rodovias que percorrem o Brasil, por exemplo, a rodovia Belém-Brasília (supondo-a bem conservada).
Tal como acontece com qualquer outra autoestrada, essa permite ao viajante chegar a tempo ao seu destino. Se não houvesse estrada nenhuma, mas apenas a natureza em estado bruto, o viajante ficaria perdido entre matas, capoeiras, brejos, rios e montes, e jamais chegaria ao termo da viagem, ou - como os antigos bandeirantes - demoraria muitos meses até alcançá-lo.
O comerciante desvairado
Pensemos agora num comerciante que, dizendo encaminhar-se para Belém do Pará, saísse de Brasília (DF) e, uma vez na estrada, comentasse com a esposa, sentada no banco ao lado: - “Vamos a Belém, meu bem, mas eu não estou para aguentar imposições. Estas faixas brancas no asfalto, essas placas, essas sinalizações todas me abafam. Nada de normas rígidas, minha querida. Independência ou morte! Liberdade!”
Nisso, em coerência com os seus devaneios libertários, o nosso motorista resolve sair das “normas rígidas” e acelera em direção à margem direita da estrada, perpendicularmente, como se fosse uma garça, capaz de levantar voo acima de guard-rails, muretas, árvores e construções. O desfecho é fácil de prever: não conseguirá percorrer uns poucos metros sem se espatifar, acabando com a viagem, com o veículo, consigo mesmo e com a esposa.
Pois bem, os Mandamentos de Deus são a estrada que o próprio Deus idealizou, traçou, rasgou e sinalizou para a breve viagem da vida, rumo à eternidade. Essa estrada - se nós a seguimos - conduz-nos a cada passo para mais perto da nossa perfeição, até levar-nos à plenitude da vida eterna.
Obviamente, como toda a autêntica estrada, existem umas margens, está traçada dentro de uns limites. Se os ultrapassamos ou os burlamos, enganamo-nos a nós mesmos e acabamos com a viagem. Quando o Mandamento diz “Não matarás”, “Não roubarás”, “Não mentirás”, “Não cometerás adultério”…, não está, de maneira nenhuma, nos limitando, mas nos encaminhando. Marcando margens além das quais só há descaminho e morte, permite-nos correr pela rota certa e avançar sempre mais, rumo ao horizonte sem fim. Este sentido eminentemente positivo do bom caminho da vida, está perfeitamente indicado pela própria Lei de Deus. Nas rodovias de asfalto, lê-se, com letras e setas: “Para Belo Horizonte”, “Para Goiânia”, “Para Fortaleza”…
No caminho da Lei Divina, mesmo nas “placas” onde se diz “Não”, um viajante lúcido e sensato saberá ler a verdadeira indicação: “Para o amor”, “Para a compreensão”, “Para a fidelidade”, “Para a verdade”, “Para a generosidade”… E, na placa principal, encontrará os dizeres mais claros, que são a meta e a iluminação de todas as outras: "Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu espírito. Este é o maior e o primeiro mandamento. E o segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Nesses dois mandamentos se resumem toda a lei e os profetas" (Mt 22, 36-39).
Um "não" que permite dizer "sim"
Cada proibição que os Mandamentos formulam, quando bem entendida, é o "não" imprescindível para poder dizer um "sim" amoroso e feliz. Se Deus nos proíbe que odiemos, e nos manda dizer "não" ao ódio, é para que possamos dizer um "sim" ao amor, para que fiquemos liberados para o amor. Se Deus nos diz: “Não pecarás contra a castidade”, “Não cometerás adultério”, é para que, dizendo "não" ao sexo egoísta, possamos dizer "sim" ao amor profundo e fiel, vivido com a alma e com o corpo, dentro do matrimônio santo, generoso e fecundo. Dizer "não" à devassidão e à impureza é “afirmar jubilosamente” - como dizia Monsenhor Escrivá - que a castidade é própria de enamorados que sabem entregar-se e aprendem a dar-se, iluminando o mundo com o seu “dom” sorridente…
Estando, como estamos, tão propensos a saltar fora do caminho, a afundar no egoísmo, a errar e perder-nos, é natural que o fato de descobrir essas verdades nos mova a elevar a Deus um cântico de agradecimento por nos ter libertado do erro e do mal, e por ter gravado na nossa consciência o caminho claro da sua Lei Divina -, os Dez Mandamentos e a “lei evangélica” que os completa e os aperfeiçoa -, pois só esta é a autêntica estrada do Amor.
(Adaptação de um trecho da obra de F. Faus: A voz da consciência)
*Padre Francisco Faus, nascido em Barcelona em 1931, é sacerdote da prelazia do Opus Dei. Licenciado em Direito pela Universidade de Barcelona e Doutor em Direito Canônico pela Universidade de São Tomás de Aquino de Roma. Ordenado sacerdote em 1955, reside, desde 1961, em São Paulo, onde exerce uma intensa atividade de formação cristã e atenção espiritual entre estudantes universitários e profissionais. Também se dedica ao atendimento espiritual de sacerdotes e seminaristas.
Padre Francisco Faus

Cometer erros ou fazer milagres?


Tomar uma decisão não é uma tarefa fácil

Tomar uma decisão nunca foi tarefa fácil, afinal, decidir implica escolher, e escolher uma coisa é inevitavelmente abrir mão de outra. Desta forma, perdas e ganhos se entrelaçam na arte de escolher e viver. A cada dia, a vida nos oferece novas descobertas, e a oportunidade de decidir nos acompanha do nascer ao pôr do sol, estejamos ou não conscientes disso. No entanto, nossas escolhas podem ser até inconscientes, mas não voluntárias. Elas trazem consequências e são impulsionadas por nossos sentimentos, objetivos e tantos outros fatores. Além disso, nossas escolhas trazem também consequências para a vida de outros, já que ninguém vive totalmente isolado neste mundo.

Madre Teresa de Calcutá, em um momento difícil na congregação por ela fundada, escreveu às filhas espirituais (irmãs da caridade): “Sejam amáveis umas com as outras. Prefiro que cometam erros com amabilidade, a que façam milagres com falta dela. Sejam amáveis sempre. Contemplem a amabilidade de Nossa Senhora, vejam como ela falava, como ela agia. Olhem para seu exemplo. Ela podia perfeitamente ter revelado a São José a mensagem do Anjo a respeito do nascimento de Cristo, mas escolheu o silêncio, não disse uma palavra. E a essa altura, vendo seu amor, Deus interveio diretamente em seu favor. Maria guardava todas estas coisas no seu coração, eis a grande lição! E quem nos dera podermos guardar todas as nossas palavras no coração dela.
Para que tanto sofrimento e tantas incompreensões? Basta uma simples palavra, um olhar, uma pequena ação sem amor e o coração da vossa Irmã mergulha na escuridão. Não deve ser assim. Peçam a Nossa Senhora que vos encha o coração de doçura”.

É como se Madre Teresa nos dissesse com a vida até mais do que com as palavras: decidam-se pelo amor, pois esta é a única força que pode mudar o mundo. E por saber do quanto precisamos de referências, ela nos mostra o melhor exemplo: a Virgem Maria. Aliás, acredito que na hora de tomar decisões é sempre muito importante a ajuda de quem nos conhece e nos ama, de preferência que esta pessoa não esteja envolvida no caso. Mesmo que a decisão seja só nossa, outra pessoa pode nos ajudar no sentido de avaliar bem “os dois lados da moeda”.
Tendo em vista que, quando nos sentimos pressionados, corremos o sério risco de agir guiados por nossos sentimentos, pela razão ou por impulsos, mas quase nunca pela verdade. Recordo-me das diversas vezes em que precisei fazer grandes escolhas na vida e acredito que não teria acertado sozinha.
A pressa também é uma grande inimiga neste hora; então, calma! Esperar um momento, deixar a poeira baixar pode ser muito proveitoso para uma boa escolha. Mas atenção! Também não é o caso de deixar a situação ir se prolongando de um dia para outro até nos acostumarmos com ela. A falta de decisão torna a vida pesada, rouba os sonhos e enfraquece a vontade. Já conheci muita gente que perdeu o sentido da vida por medo de fazer uma escolha. É preciso calma, mas não comodismo.

Talvez hoje, ao ler este texto, você se sinta encorajado a tomar uma decisão. Se é o caso, não tenha medo de dar os passos e aceitar o desafio de passar pelo processo necessário da mudança. Pode ser mais fácil do que você imagina, mas só o saberá ao tentar. A natureza nos ensina muito sobre isso. Quando observamos a mesma árvore nas diversas estações do ano, ficamos impressionados como a vida vai se entrelaçando entre perdas e ganhos. Conosco não é diferente e saber perder para ganhar é questão de sobrevivência. 

No entanto, que sirva de lição a “cartinha” da Madre Teresa: Entre fazer grande obras e até milagres ou sermos caridosos é preferível optar pela caridade, e o amor, na maioria das vezes, traduz-se no silêncio e na discrição.

Olhemos para Nossa Senhora, ela é o exemplo perfeito de quem decidiu amar na simplicidade sem se preocupar em fazer coisas extraordinárias aos olhos humanos. Inspirados em seu exemplo, tenhamos hoje a coragem de levar luz aos corações em vez de trevas. Madre Teresa fez desta escolha a sua missão durante toda a vida. Em meio às grandes provas pelas quais essa grande mulher de Deus passou vivendo a “noite escura da alma”, escreveu ao seu diretor espiritual: “Um caloroso SIM a Deus e um grande SORRISO para todos são as únicas duas palavras que me mantêm seguindo em frente”, e esta escolha corajosa beneficiou e continua beneficiando a tantos ao longo dos anos que se seguiram.

Tomemos a decisão de seguir em frente com um sorriso nos lábios e um caloroso "sim" a Deus, que nos chama a optarmos pelo amor, mesmo que cometamos erros, pois este certamente é o maior milagre do qual o mundo carece. 

Acenda a luz!


Luz do afeto, do carinho, do elogio, da valorização

A Igreja reza confiante na Quaresma: “Ó Deus, que nos mandastes ouvir o vosso Filho amado, alimentai nosso espírito com a vossa palavra, para que purificado o olhar de nossa fé, nos alegremos com a visão da vossa glória”. Mas é bem realista perceber que há muitos fatos e problemas que dificultam nosso “olhar de fé”. Multiplicam-se notícias de atos violentos e um sem número de crimes que nos deixam estarrecidos. Num hipotético campeonato de violência e criminalidade, nossa Belém já está à frente de muitas outras regiões do país. A vida é banalizada, mata-se quase por brincadeira, o trânsito se torna caótico e violento.
Nosso sistema se saúde, dos melhores do mundo em sua concepção, não consegue se universalizar. Ainda que nosso país experimente uma fase positiva de crescimento econômico, persistem as desigualdades sociais e muitos dos projetos pessoais desmoronam como castelos de areia. Já estamos pagando muito caro pelas opções feitas pela sociedade nas últimas gerações. Como olhar com fé todas estas realidades e enfrentar os desafios que nos cercam?

Deus não arquitetou qualquer castigo para a humanidade, justamente porque Ele é só Amor. Nós mesmos combinamos nossas terríveis armações e nos enredamos de tal forma que se erguem verdadeiros becos sem saída, dificultando a percepção dos rumos a serem percorridos. É como uma criança que ganhou um enorme brinquedo, cheio de aparatos eletrônicos, sem dúvida, maravilhosos, mas não sabe o que fazer com ele. Falta-lhe um manual de instruções! Parece-nos que estamos num túnel escuro, que muitos chegam a chamar de noite da cultura contemporânea.

Mesmo em quadros culturais diferentes, a natureza humana é sempre a mesma. Os primeiros discípulos de Jesus também se assustavam com as surpresas do caminho percorrido com Ele. Carregavam consigo as esperanças de séculos, no desejo sincero da chegada do Messias esperado. No entanto, justamente Aquele em quem aprenderam a depositar confiança parece-lhes misterioso demais para sua frágil capacidade de compreensão. Dura foi a progressiva percepção de que ir atrás d'Ele exigiria deles passar pela escuridão da cruz e da morte. Era-lhes escandalosa a perspectiva de que o sofrimento faz parte e é estrada para a realização plena de qualquer pessoa. O impasse em que se encontravam gritava pela luz!
uns deles foram escolhidos para subir a um alto monte, que a tradição localizou no Tabor (cf. Mc 9, 2-12), para entenderem o segredo do Senhor. A atenção que lhes deu Jesus era tanta que até quis se cercar de testemunhas abalizadas: Moisés e Elias, a lei e os profetas. Mais ainda: abriu-lhes o Céu, permitindo-lhes ouvir o Pai do Céu: “Então desceu uma nuvem e os encobriu com sua sombra. E da nuvem saiu uma voz: Este é o meu Filho amado. Escutai o que ele diz!” Viram a alvura da glória de Jesus, mais bonita do que o trabalho da mais competente lavadeira do mundo. Ali, no turbilhão de interpretações sobre o Mestre, cercados pela perseguição e incompreensão, deviam entender que Deus é o senhor da história e que a saída tinha um nome, o de Jesus Cristo, o Filho amado a ser ouvido e seguido. Tiveram que aprender quando desceram do monte, pois foram obrigados ao silêncio, já que se tratava primeiro de viver do que falar.

Até hoje os cristãos se veem no mesmo impasse, pois estão inseridos nos mesmos desafios a que estão sujeitos seus contemporâneos. A violência e a criminalidade não pedem uma carteira de identidade religiosa, mas atingem a todos. As perguntas pelo sentido da vida continuam a nos provocar! O que fazer com o brinquedo que temos nas mãos, sabendo que dentro dele pode estar uma bomba-relógio?

O “manual de instruções” diz que há que se arriscar no seguimento de Jesus Cristo. Comece por ir atrás d'Ele, apostando na imensa legião de testemunhas, pessoas que passaram pelo "vale da sombra da morte" ou que foram conduzidas aos píncaros da contemplação de Seu amor. Com o tempo, a compreensão do sentido da existência acontece. Mas é preciso começar com a vida e com o coração. A noite da cultura é, em grande parte, fruto das pretensões de quem quer ser, com a própria cabeça, dono do mundo. Uma boa dose de simplicidade infantil e de gratuidade fará bem a todos.

Pessoas assim serão capazes de dar o primeiro passo. Nos quartos escuros da existência, levantar-se para acender a luz acaba desfazendo os pequenos ou grandes fantasmas. E mais ainda quando tomamos a iniciativa de oferecer a luz do afeto, o carinho do elogio, a valorização do bem, mesmo pequeno, que as pessoas sabem fazer. E se no mar de maldade existente pudermos ir ao encontro da humanidade desfigurada a fim de descobrir que ninguém foi feito para a perdição? Olhar ao redor e perceber que há uma nuvem (cf. Mc 9,7), símbolo da ação misteriosa do Espírito Santo, na qual podemos entrar para ouvir a voz do Pai do Céu!

Homens e mulheres de nosso tempo poderão oferecer o que têm de melhor, parecidos com Abraão, sem medo de dar a Deus o próprio filho (cf. Gn 22,1-18). Só assim Deus Pai poderá desfazer a triste lógica dos sacrifícios humanos que persistem até hoje. E Seu amor foi tão grande que aceitou entregar Seu Filho amado (cf. Rm 8,31-34), permitindo-Lhe entrar com amor infinito lá dentro da lógica irracional da maldade, para resgatar todos os homens e mulheres que, escravos do pecado, clamam por salvação. Com Sua graça e seguindo o rastro deixado por Ele, a luz se acende! Na grande cidade ou na grande humanidade, rostos transfigurados poderão emergir até das cinzas! A beleza e a bondade para as quais a humanidade foi criada virão à tona.



Dom Alberto Taveira Corrêa
Arcebispo de Belém - PA